Um fundo apressado e sujo

O bonito do bordado, para mim, não é a analogia direta com a escrita mas o fato de que dele se tira uma infinidade de fios

Seane Melo
4 min readJan 31, 2022

Esse ano*, decidi voltar a bordar. E, enquanto bordava, quis escrever. Primeiro uma carta, depois um ensaio, e até minha tese. Mas sempre que sentia esse desejo e levantava o olhar do tecido, um pensamento me parava. Para escrever, era preciso ainda finalizar o bordado. Essa regra, que eu mesma criei, envolvia um prazer — que aprendi a sentir com o trabalho inútil e calado — e um medo — que tinha de ser obrigada a voltar para o mundo da produtividade.

Na carta que pensei em escrever entre as inúmeras idas e vindas da agulha pelos buraquinhos do tecido com padrão de ponto de cruz, queria contar para Estela Rosa que os bordados são pura lógica. Nunca imaginei Estela como uma mulher que bordasse, mas, por algum motivo, pensei que ela ficaria feliz, como eu, com a curiosidade.

Durante muitos anos, tive a impressão de que o bordado e a mão eram inseparáveis. E não apenas isso. Imaginava que o bordado era um resultado direto de uma mão. Meus bordados me diziam que havia algo na minha mão — no movimento, na força e no suor que enferrujava as agulhas — que não era completamente apropriado para a tarefa. Desde criança, aprendi que não tinha uma mão boa.

Minha mão parece sempre ter estado entre mim e o doméstico. Como algo que sinalizava um desencaixe irreversível. Antes de me tornar mulher, já me descobri em falta. A mão, que não era boa para o bordado ou para mexer doces sem deixar empelotar, teve que procurar outra função, ainda que imaginária. Pois eu escrevia na cabeça uma fuga para o lugar que muito nova me descobri falhando em ocupar.

De fato, o bordado é inseparável de sua dimensão física. Da necessidade da luz para os olhos não cansarem e do encosto certo para as costas, da atenção à posição do pescoço e do cuidado com o movimento do pulso já tão desgastado pelo teclado do computador. Mas tive vontade de contar para Estela Rosa que, nessa tentativa de reaver o ato de bordar, descobri que o problema era menos a minha mão que a minha dificuldade para entender a lógica dos desenhos e os caminhos pelos quais ele tinha que seguir para que o avesso ficasse limpo.

O bonito do bordado, para mim, não é a analogia direta com a escrita — Kamenszain diz que “já é parte do sentido metafórico comparar o texto a um tecido” -, mas o fato de que dele se tira uma infinidade de fios. Quanto mais se olha, mais se pode encontrar. E isso também poderia valer para o texto, mas implicaria entender o bordado apenas por sua parte visível. Uma imagem que pode ser relida sempre de uma nova forma. Para a bordadeira, no entanto, o bordado é sobretudo o avesso. E ele é o próprio corpo e ato.

Mesmo aprendendo que é preciso calcular e planejar o tamanho da linha e os ziguezagues para que o caminho sempre pareça o mais reto possível, o meu fundo — foi assim que aprendi a falar desde criança — revela pressa, indecisão e aceitação. A aceitação do meu fracasso enquanto mulher perfeita, que também é uma espécie de desafio à mão boa, à minha própria mãe.

Neste momento em que, sem razão aparente, busco recuperar o movimento doméstico como um conforto ao que está duro, difícil e paralisado na escrita, recorro justamente a um tecer de laços com uma herança feminina familiar. Mas, principalmente, para confrontar nossos avessos. Neste ato, percebo, aí sim, uma nova analogia entre o bordado e a escrita. Talvez ambos representem, afinal, uma conversa com a mãe, a partir da qual, como diz Kamenszain, “se sedimenta e cresce, como uma teia, o imenso texto escrito por mulheres”.

*Esse texto foi escrito em 2020.

Na última semana, enviei um bordado para uma amiga. Meu segundo grande bordado. E fiquei meditando sobre o ato de finalizar um bordado. Especialmente aos domingos, quando tiro o dia para escrever e estudar, a ideia de finalizar algo se agiganta. Nesse processo, lembrei desse texto que escrevi em 2020 e fiquei com vontade de compartilhar por aqui. Espero que você não se importe. Nem só de putaria vive esta escritora, mas para fazer justiça à minha reputação, dei um título sugestivo.

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Seane Melo

Jornalista e escritora maranhense, autora do romance “Digo te amo pra todos que me fodem bem”