Não precisava fazer isso

Não sei porque a música da bicicleta e a louça me fazem pensar neles dois

Seane Melo
4 min readJun 6, 2021
Ilustração: Adams Carvalho

Quando dou o primeiro passo para frente ainda penso no que o compositor disse. Que ele escreveu a música Bicycle andando de bicicleta, cantarolando as palavras na cabeça como que girando uma correia pelo caminho. Olho para a pilha de louça e penso em pular essa parte, mas que diferença existe entre a bicicleta e a louça? Pego a esponja. Sei que não adianta me apressar para escrever, porque cada uma dessas palavras está sendo escrita enquanto a espuma aparece sobre a superfície dos copos e pratos sujos. Eu entendo o que ele quer dizer.

O pensamento que insiste em voltar durante os movimentos circulares da esponja é a imagem dela. Eu me pergunto se ela gosta de uma música chamada bicicleta, se ela se promete talvez dar uma volta assim que fizer um dia de sol mais bonito, ou se não, se pensa em apenas ouvi-la em dias tristes, se por algum acaso pensa em mim.

Espero que eu não seja um pensamento triste. Mas, ao mesmo tempo, não posso evitar. Na pia, pequenos restos de comida se misturam, rondam o ralo. A descida está mais lenta há um tempo. Uma outra memória se mistura com a dela.

Uma vez escrevi um texto sobre isso. Escondi, nunca reli, nunca quis publicar. De certa forma, acho que sempre soube que estava errada. No texto, eu reclamava do que um rapaz havia feito comigo. No conhecemos em uma festa, um amigo nos apresentou, perguntei seu Instagram e o segui. Mandei uma cantada no dia seguinte, ele riu, me chamou para sair. Simples assim.

Nos encontrávamos quase dia sim, dia não. Sempre que estava livre me avisava. Quer passar aqui? Uma vez fez o convite com uma foto que tirou saindo do banho. Eu gostava da sensação de caminhar até a casa dele, sentindo que guardava um segredo, que não devia ser permitido ter isso tudo — tanto sexo e bom, com uma pessoa tão bonita e tão carinhosa. Sem nenhum esforço além de digitar “quero”, “posso”, “tenho só 15 min hoje, mas se quiser”.

Umas duas ou três semanas desse arranjo, um dia ele mandou mensagem como de costume. Quer dizer, quase. Perguntava se eu queria passar na casa dele, essa era a parte costumeira. Quero conversar, essa era a diferença. No espelho do elevador, fixei a minha imagem. Ainda bem que eu tinha decidido usar um vestido bonito naquele dia. Imaginei qual seria a reação dele.

Na porta do apartamento, ele exibia o sorriso mais falso que eu já tinha visto. Talvez nunca tivesse visto os sorrisos falsos. Mas aquele era tão horrorosamente forçado, que me fazia ter vontade de olhar para qualquer outro lugar. Devo ter feito isso. Ele me levou para o quarto e esperou eu me sentar na beira da cama. Ficou em pé na minha frente, querendo se encostar no guarda-roupa, mas tenso o suficiente para não conseguir.

Então ele disse que não poderia mais continuar. Me explicou os porquês, os quandos, me entregou todas as respostas que eu poderia querer, todos os olhares sinceros e tristes, todas as palavras doces de consolo. E, como se não achasse que as palavras poderiam ser o suficiente, me deu um presente. Fiquei sentada na beira da cama, com as alças da sacolinha de papel dançando na mão, me sentindo inexplicavelmente humilhada.

Quando terminou o que tinha para dizer, me olhou apreensivo. Dei de ombros, disse que ele não precisava ter feito tudo aquilo, que não me devia explicações, que tudo bem se não fosse rolar mais. Que podia só ter mandado uma mensagem — ele arregalou os olhos nesse momento — e tudo estaria certo. Ele abaixou a cabeça, envergonhado talvez, e sussurrou baixinho: eu nunca conseguiria fazer isso.

O texto que escrevi era sobre esse presente e sobre como eu o odiei. Um prêmio de consolação que nunca pedi. Como se não soubesse me cuidar, como se me importasse tanto assim. Achei que odiava o prêmio e o fato de ele ter me feito ouvir tudo o que queria dizer, mas quando essa memória se mistura à dela, tenho que reconhecer que só odiava perder.

Não sei porque a música da bicicleta e a louça me fazem pensar neles dois. Talvez seja o fato de haver algum conforto e melancolia. Talvez os pensamentos girem desse jeito na minha cabeça, porque ainda não encontrei um jeito de deixar ela saber que eu estava errada. De me deixar saber que eu estava errada.

Obrigada por me contar. As palavras que eu não disse estão ausentes de novo. Não consigo me imaginar dizendo. Mal consegui ouvir o que ela disse, até agora só lembro a primeira frase. Acho melhor não. A voz dela mutada, apenas os lábios se movendo de um jeito diferente do que imaginei.

Para ela, não disse que não precisava daquilo, que preferia nunca ter estado sentada naquela mesa tendo que olhá-la, odiando tudo o que se passava na minha cabeça. Mais um elevador para esperar e encarar com raiva.

Ela não deve imaginar a quantidade de dias em que senti que a odiava e não entendi porque me chamou e escolheu passar por aquilo comigo. Para a falar a verdade, só entendo agora, em que as mãos já estão enrugadas da umidade da louça.

Penso nele me dizendo que não poderia não me encontrar e me explicar, na importância que eu não consegui ver na hora ou admitir depois. Pensar nisso agora, me dá vontade de passar um café e ouvir mais uma vez essa música.

Será que ela também ouve? Será que por acaso pensa em mim?

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Seane Melo

Jornalista e escritora maranhense, autora do romance “Digo te amo pra todos que me fodem bem”