Foi ruim, mas foi bom — parte I
Comemos, bebemos e implicamos com o outro até eu não aguentar mais e beijá-lo no meio de uma discussão.
– Só porque não posso furar a quarentena tá chovendo homem no meu Insta — Ester soltou numa conferência no zoom — Abro minhas DM e tem uns cinco boys mandando emoji de foguinho pras minhas selfies
– Porra, amiga, deus me livre. E quem me dera. O pessoal tá subindo pelas paredes porque não pode sair de casa, né? — comentei.
– Nem me fala, tô a um passo de furar essa quarentena pra encontrar com alguém. Na real, acho que se tivesse ficado com algum desses caras que tão me paquerando antes disso tudo começar, já tinha furado — confessou.
– Tu diz porque ia ficar mais tranquila de confiar no cara? — Luísa perguntou.
– Na real, é que sempre fico naquela: vai valer a pena todo o esforço?
Nós rimos.
– Pior que é verdade — concordei. — Lembra daquele cara que saí antes disso tudo começar?
– Que cara?
A gente deu match no Hppn. Nunca tive muita sorte em conhecer homens na vida real e estava cada vez mais atolada de trabalho, mas a carência tinha começado a bater. Faz quantos meses desde Otto? Melhor nem fazer as contas, Vanessa! Entrei no app meio descrente, mas me deparei logo com o perfil dele: Paulinho. Escrito assim, no diminutivo. E não é que ele fosse exatamente bonito ou que o perfil me dissesse muito, mas as fotos eram boas, sabe? O fundo levemente desfocado, ele com uma camiseta preta e a barba arrumada, uma tatuagem aparecendo na mão e — o toque de mestre — uma caneca de café esmaltada pousada em cima da mesa.
– Nossa, eu também curtiria só por essa foto — Ester me apoiou.
– Sinceramente, eu não vejo a hora de vocês virarem bissexuais — Luísa soltou com olhar de pena.
– Enfim…
Ele veio puxar assunto e, bom, não era nada do que eu esperava. O que foi ótimo, na verdade. Sempre fico com preguiça de gente previsível. O cara tinha aquelas fotos super hipster, mas era muito mais parecido comigo do que imaginava, pelo menos no senso de humor. Logo que joguei uma, ele segurou e devolveu. E o tipo de tirada que a gente trocava não era só aquela de paquerinha, sabe? Tinha um prazer em ficar implicando um com o outro. Em um dia de conversa, já me senti super próxima dele.
O encontro demorou para sair. Acabou que eu estava atolada de trabalho e ele tinha começado um curso. Foram duas semanas até a gente conseguir. Quando soube que ia demorar para rolar, até desanimei e achei que nossa empolgação não ia durar. Mas ele começou a fazer parte da minha rotina naturalmente. Ficamos trocando mensagens e fotos do nosso dia a dia.
– Bem apaixonadinhos — Ester sorriu.
– Nem me fala…
Só quando entrei no carro, me dei conta: ainda não o conhecia realmente. Ficar trocando mensagens dava a impressão de que ele fazia parte da minha vida, mas, na real, nunca tínhamos nos encontrado ou estabelecido qualquer contato físico e isso me deixou um pouco mais tímida do que eu esperava. Dei um “oi” sem graça e me aproximei para dar dois beijinhos, tentando disfarçar meu constrangimento. Ele só seguiu o movimento, mas quando voltei a me encostar no banco do carona, me olhou nos olhos bem sisudo.
“Fala sério que tu vai me cumprimentar assim!”
“Assim como?”, perguntei, já me sentindo um pouco menos travada depois dessa quebra da formalidade
“Sei lá, me abraçando meio de longe”, reclamou
“Ai, eu tenho essa fama”
“Que fama?”
“De abraçar mal”
Nós rimos.
“Pois pode tratar de melhorar isso. Quase que te mando descer do carro”
“Nossa, que grosso!”
“Marrapá”
A noite seguiu nesse pé. Comemos, bebemos e implicamos com o outro até eu não aguentar mais e beijá-lo no meio de uma discussão. Eu tentava defender os relacionamentos não-monogâmicos, ele dizia que era inaceitável e emendava histórias absurdas de traição. Era uma questão prática. Ou a gente se beijava ou teríamos ido embora nos odiando. Pode parecer loucura, mas essa era a nossa dinâmica. E, apesar de ter descoberto que a gente tinha opiniões muito diferentes e discordava genuinamente — inclusive em assuntos que me faziam levantar a bandeira vermelha — eu tava pronta para ir à casa dele.
O problema começou aí. Eu me sentia completamente pronta. Tinha comido pouco, bebido cerveja o suficiente para me sentir soltinha, mas não sonolenta e com a barriga inchada, o desodorante tava valendo e ainda devia estar toda cheirosinha. Vamo pedir a conta?, sugeri quando ele fez o movimento de chamar o garçom para pedir mais uma cerveja.
“Ué, por quê? Vamo beber mais, tá cedo”
“Ah, acho que tô de boa de beber… e durmo meio cedo, sabe?”
“Ah não! Nada a ver a gente sair agora. Vamo pelo menos a saideira”
Bebemos mais uma. Ele ainda tentou me convencer de pedir outra, mas recusei enfaticamente. Perguntou se eu queria voltar para casa, então tive que explicar que queria ir para a casa dele. Nossa, tão direta!, reclamou. Saímos. No carro, o estranhamento daqueles últimos momentos no bar desapareceu. Voltamos ao nosso modo de conversar à vontade e continuamos assim até chegar ao seu quarto.
O cômodo era equivalente às fotos no aplicativo. Simples, organizado e dando a impressão de ter sido pensado com cuidado. Ele era um cara intrigante de verdade. A pinta de boy lixo que dava no bar não parecia combinar com uma certa delicadeza que podia ser entrevista nos detalhes. Percebi que durante toda a noite tinha tentado encaixá-lo dentro de algum estereótipo disponível para saber o que esperar. Ou como me defender?
Quando me abraçou na penumbra do quarto, a única coisa que me passava pela cabeça era o quanto era cheiroso. Começamos de mansinho, caminhando até a cama, nos deitando, nos demorando em beijos e experimentando a sensação de estar em contato com o corpo de outra pessoa pela primeira vez. Eu gostava de ficar daquele jeito. Ainda vestida, deitada, no escurinho, me dando conta do meu próprio corpo no limite com o dele, como se não soubesse o que ia acontecer em seguida. A gente nunca sabe, na verdade.
Este conto foi originalmente publicado na Lábios Livres, onde publico quinzenalmente histórias inéditas. Você pode conferir em primeira mão por lá ou me acompanhar por aqui!
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